Entrevista sobre Inteligência Artificial e Ensino do Direito com a Profª Nina Beatriz Stocco Ranieri
A Professora da Faculdade de Direito da USP, Nina Ranieri é uma das maiores referências no Brasil em direito à educação, políticas públicas educacionais e ensino superior. Nesta entrevista, concedida ao Projeto de Pesquisa “IA e Educação” da Lawgorithm — grupo dedicado ao estudo dos impactos da inteligência artificial na universidade e às medidas de governança associadas —, a professora compartilha sua visão sobre os desafios e potenciais da IA na formação jurídica.
Perguntas e Respostas:
1. Do ponto de vista pedagógico, quais as principais vantagens e desvantagens da utilização da IA no ensino do Direito?
NR: Embora não seja pedagoga nem tenha, ainda, experiencia com o emprego da IA no ensino do Direito, penso que as principais vantagens estão na ampliação do acesso à informação e no apoio acadêmico. A IA pode oferecer apoio ao estudante, por meio de traduções de textos em língua estrangeira, resumo de processos judiciais, treino para redação de peças judiciais, e tutores virtuais, inclusive para o ensino de idiomas, por exemplo. Por outro lado, as desvantagens incluem o risco de simplificação e superficialidade na aprendizagem, a dependência de respostas automatizadas e a limitação do pensamento crítico. Além disso, há preocupações com a reprodução de vieses e a opacidade dos algoritmos (a chamada “caixa-preta algorítmica”), que podem comprometer valores fundamentais do ensino jurídico, como o pluralismo interpretativo e o raciocínio argumentativo.
2. Como a IA pode auxiliar na personalização do ensino do Direito, considerando as diferentes necessidades e estilos de aprendizagem dos alunos?
NR: Já se sabe que sistemas baseados em IA podem identificar padrões de desempenho, mapear lacunas de aprendizagem, propor trilhas adaptativas de estudo e ajustar o conteúdo ao ritmo e estilo do aluno. Isso vale para todas as áreas do conhecimento e não apenas para o ensino jurídico, dede que haja informação acerca do uso da IA e revisão humana.
3. De que forma a IA pode contribuir para o desenvolvimento de habilidades críticas e analíticas nos estudantes de Direito, tão importantes para a prática jurídica?
NR: Penso que, bem empregada, a IA pode ser usada como ferramenta que estimule o pensamento crítico, por meio da comparação de argumentos, da simulação de julgamentos com diferentes desfechos e da análise de jurisprudência digitalizada. Conforme tenho empregado a IA generativa na pós-graduação, os alunos podem usá-la, de forma responsável e produtiva, para:
Exploração de Conceitos: Utilizar IA para obter explicações introdutórias sobre IA, aprendizado de máquina e governança digital.
Análise Comparativa: Gerar resumos comparativos entre diferentes regulações internacionais e discutir seus impactos na governança e na cidadania digital.
Formulação de Perguntas para Debate: Auxiliar na criação de perguntas provocativas para os seminários.
Geração de Ideias e Estruturação de Argumentos: Usar IA para sugerir diferentes linhas de raciocínio e explorar possibilidades argumentativas para o artigo jurídico.
Análise de Casos Práticos: Buscar referências e precedentes relevantes para enriquecer a discussão jurídica.
O uso da IA deve ser sempre acompanhado de revisão crítica pelo aluno. O objetivo não é delegar a produção intelectual à tecnologia, mas potencializar a capacidade analítica e crítica sobre os temas do curso.
5. Quais os desafios éticos e legais que a utilização da IA no ensino do Direito pode trazer, especialmente no que diz respeito à privacidade dos dados dos alunos e à propriedade intelectual?
NR: Os principais desafios éticos envolvem a proteção de dados pessoais dos estudantes, conforme o previsto na LGPD no Brasil e o uso responsável de dados educacionais sensíveis. Há ainda a questão da autoria e da originalidade em conteúdos gerados por IA, que afeta diretamente os princípios da propriedade intelectual no meio acadêmico. Além disso, é necessário que o estudante indique o emprego da IA em tarefas acadêmicas, acompanhado de cópia do prompt utilizado.
6. Como a IA pode ser utilizada para tornar o ensino do Direito mais inclusivo e acessível para alunos com deficiência ou outras necessidades especiais?
NR: Suprindo necessidades básicas desses estudantes, conforme o caso, por meio de transcrições automáticas, sintetização de textos em linguagem simples, tradução de conteúdos em tempo real, e adaptação de leitura para pessoas com deficiência visual ou cognitiva. Todas essas atividades devem estar sob o uso ético da IA.
7. De que forma a IA pode auxiliar os professores de Direito na avaliação do desempenho dos alunos e no fornecimento de feedback individualizado?
NR: A IA pode automatizar correções de atividades estruturadas, mapear dificuldades recorrentes e fornecer análises de desempenho personalizadas, especialmente em classes com grande número de estudantes, como já é feito em várias escolas de nível médio.
8. Como a IA pode ser utilizada para simular situações jurídicas reais e proporcionar aos alunos uma experiência de aprendizado mais prática e imersiva?
NR: A IA pode simular julgamentos, audiências ou negociações, promovendo um ambiente de aprendizagem mais imersivo e prático. Essas simulações, porém, devem ser contextualizadas e sempre revisadas, para evitar reforço de estereótipos ou soluções simplistas.
9. Quais as competências e habilidades que os professores de Direito precisam desenvolver para utilizar a IA de forma eficaz em suas práticas pedagógicas?
NR: Os professores precisam desenvolver competências em ética da IA, revisão crítica de conteúdos gerados e letramento digital. Devem ainda ser preparados para orientar os alunos sobre usos adequados e riscos associados à IA. O maior problema, a meu ver, é o letramento digital continuado dos docentes, dada a velocidade do desenvolvimento das tecnologias de IA, o que não é simples do ponto de vista prático, particularmente para a geração analógica.
10. Como a IA pode ser utilizada para promover a pesquisa e a produção de conhecimento no campo do Direito?
NR: A IA pode facilitar buscas jurídicas, análises jurisprudenciais e revisão textual, destacando-se que seu uso na pesquisa deve ser transparente, com indicação clara das contribuições humanas e revisão dos dados utilizados. A FAPESP, neste momento, prepara um código de ética em pesquisas com uso de IA generativa.
11. Como a utilização da IA no ensino do Direito pode impactar o futuro da profissão jurídica?
NR: A IA tende a transformar a prática jurídica, exigindo novas habilidades técnicas e éticas, o que já vem ocorrendo. O ensino jurídico deve preparar os estudantes para interagir criticamente com essas ferramentas, entendendo seus limites, potencialidades e impacto nas funções jurídicas tradicionais.