Mercados Digitais em Perspectiva: O Futuro do Debate

Em 17 de fevereiro de 2025, a Lawgorithm e o Legal Grounds Institute realizaram o evento "Mercados Digitais em Perspectiva: O Futuro do Debate", no B Hotel, em Brasília. Composto por três mesas redondas, o evento teve como objetivo discutir os desafios concorrenciais e regulatórios associados aos ecossistemas digitais e aos sistemas operacionais móveis, considerando os desdobramentos institucionais em curso no Brasil e experiências internacionais relevantes. A seguir, apresenta-se o relato detalhado de cada painel.

Painel 1 — O Papel do CADE na Regulação de Mercados Digitais

O painel de abertura abordou a proposta de ampliação das atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) no tocante à regulação dos mercados digitais, em linha com o diagnóstico formulado pelo Ministério da Fazenda. A sessão foi moderada por Bianca Mollicone (Pessoa e Pessoa Advogados, Legal Grounds Institute) e contou com Felipe Roquete (CADE), Ravvi Madruga (Ministério da Fazenda), Sílvia Fagá (Ecoa Consultoria Econômica, IBRAC) e Vinicius Klein (UFPR).

Exposição do modelo regulatório proposto pelo Ministério da Fazenda Felipe Roquete e Ravvi Madruga apresentaram os fundamentos institucionais e econômicos da proposta. O diagnóstico parte da constatação de que os instrumentos tradicionais do antitruste se mostram insuficientes para lidar com efeitos de rede, concentração de dados e estratégias de fechamento de mercado. A proposta prevê a possibilidade de o CADE impor obrigações específicas a plataformas com poder de mercado relevante, ainda que não haja infração antitruste prévia, inspirando-se em modelos como o da Alemanha (Bundeskartellamt) e do Reino Unido (CMA).

Ravvi destacou que, diferentemente de agências setoriais, o CADE possui competência horizontal e flexibilidade institucional para lidar com mercados digitais dinâmicos. Além disso, relembrou que o CADE já exerce poderes regulatórios lato sensu desde a reforma da Lei nº 12.529/2011, e que sua trajetória em práticas como acordos de leniência e termos de compromisso evidencia uma cultura institucional adaptativa.

Discussões sobre governança e impactos regulatórios Sílvia Fagá enfatizou a importância de um modelo de governança regulatória que assegure previsibilidade e proporcionalidade. Destacou que a flexibilidade institucional do CADE pode ser um ativo, desde que acompanhada de salvaguardas que evitem erros regulatórios — tanto falsos positivos (intervenções indevidas) quanto falsos negativos (omissões relevantes). Observou que o modelo proposto pelo Ministério da Fazenda oferece uma abordagem flexível e responsiva, mais adequada ao dinamismo dos mercados digitais.

Vinicius Klein, por sua vez, defendeu que a imposição de obrigações ex ante deve ser precedida de estudos de mercado (market studies) e consultas públicas. Argumentou que a construção dessas obrigações deve estar ancorada em racionalidade econômica e ser transparente em sua motivação. Sugeriu que a criação de instâncias procedimentais específicas — como fóruns interagências — pode ser uma forma eficaz de assegurar participação de órgãos como a ANPD, a Anatel e o Banco Central na construção de medidas regulatórias específicas.

Discussões principais

  • O modelo proposto desloca o foco da regulação setorial para uma abordagem baseada na designação de agentes com poder de mercado, com obrigações personalizadas, alinhando-se a experiências europeias e asiáticas.

  • A qualificação institucional do CADE como regulador (e não apenas órgão judicante) poderá ter implicações sobre outros marcos legais, como o projeto de regulação da inteligência artificial em trâmite no Congresso Nacional.

  • Os participantes destacaram a necessidade de articulação interinstitucional para evitar sobreposição normativa e assegurar coerência entre as esferas concorrencial, de proteção de dados e regulação setorial.

  • A proposta foi vista como um avanço, mas requer cuidados quanto à definição dos critérios de designação, ao processo decisório e à estrutura de governança das novas atribuições do CADE.

Os debates revelaram um consenso sobre a urgência de adaptação institucional para enfrentar os desafios específicos dos mercados digitais, equilibrando inovação, proteção de direitos e preservação da concorrência.

Painel 2 — Sistemas Operacionais para Dispositivos Móveis e Concorrência

O segundo painel abordou os desafios concorrenciais decorrentes das restrições técnicas e contratuais impostas por sistemas operacionais móveis, como iOS e Android, destacando os impactos para desenvolvedores e usuários de aplicativos. A sessão foi moderada por Juliano Maranhão (USP, Maranhão e Menezes Advogados, Lawgorithm) e contou com as participações de Amanda Flávio de Oliveira (UnB, UNCTAD/ONU), Cesar Mattos (Consultor da Câmara dos Deputados) e Mario Zúñiga (PUC-Peru, ex-INDECOPI).

Juliano Maranhão contextualizou o painel a partir dos conceitos de ecossistemas digitais e de gatekeepers. Amanda Flávio de Oliveira, por sua vez, caracterizou os sistemas operacionais móveis como infraestruturas digitais de caráter essencial, responsáveis por condicionar o acesso dos desenvolvedores aos usuários finais. Argumentou que o grau de concentração e a dependência tecnológica observados nesses ecossistemas demandam vigilância regulatória contínua e a adoção de princípios que assegurem interoperabilidade, transparência e liberdade de escolha dos usuários. Destacou ainda o papel da ONU (por meio da UNCTAD) na formulação de diretrizes para a regulação dessas infraestruturas.

Cesar Mattos enfatizou a necessidade de distinguir entre práticas anticoncorrenciais e estratégias legítimas de diferenciação. Afirmou que nem toda restrição técnica deve ser considerada como fechamento de mercado, e que a análise concorrencial deve considerar o contexto, os incentivos e o impacto econômico das condutas. Alertou para os riscos de um enforcement excessivo e defendeu uma abordagem baseada em evidências, especialmente diante da complexidade técnica e do dinamismo do setor.

Mario Zúñiga compartilhou reflexões sobre os desafios enfrentados por autoridades concorrenciais na América Latina, em especial quanto à limitação de capacidades técnicas e à velocidade da inovação. Reforçou a importância de coordenação entre políticas de concorrência, proteção de dados e defesa do consumidor. Defendeu a regulação responsiva como alternativa ao modelo punitivo, com instrumentos que promovam diálogo regulatório, flexibilidade e foco na solução de problemas específicos de mercado.

Discussões principais

  • Os sistemas operacionais móveis funcionam como infraestruturas essenciais e concentram poder de intermediação relevante, justificando atenção regulatória específica.

  • Restrições técnicas podem tanto refletir preocupações legítimas (segurança, privacidade) quanto ser utilizadas como barreiras à entrada e à inovação.

  • A atuação regulatória deve ser baseada em evidências, com avaliação contextualizada dos efeitos das condutas e seus trade-offs.

  • A articulação entre autoridades de concorrência, dados pessoais e defesa do consumidor é considerada condição necessária para eficácia regulatória.

  • Modelos como os do Reino Unido, Singapura e experiências da UNCTAD foram apontados como referências para uma abordagem equilibrada, adaptativa e coordenada.

O painel ressaltou que a regulação dos sistemas operacionais exige instrumentos flexíveis e sensíveis às especificidades técnicas e econômicas dos mercados digitais, com vistas à promoção de inovação, concorrência justa e proteção de direitos dos usuários.

Painel 3 — Sistemas Operacionais, Segurança e Privacidade

O painel final abordou as intersecções entre segurança da informação, proteção de dados pessoais e restrições técnicas impostas por sistemas operacionais móveis. A sessão foi moderada por Bernardo Fico (Maranhão e Menezes Advogados, Lawgorithm) e contou com a participação de Miriam Wimmer (ANPD), Marcos Lima (M&A Consultoria Econômica) e Mônica Fujimoto (IDP, Horta e Bachur Advogados).

Miriam Wimmer destacou como determinadas políticas técnicas adotadas por plataformas — como a limitação à portabilidade de dados ou a imposição de opt-outs complexos para rastreamento — afetam diretamente os direitos dos titulares previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Reforçou que essas condutas devem ser avaliadas não apenas sob a ótica concorrencial, mas também segundo os princípios da LGPD, como finalidade, necessidade, adequação e não discriminação. Ressaltou que o desenho técnico de interfaces e funcionalidades pode influenciar profundamente a autodeterminação informativa e que o enforcement regulatório deve acompanhar tais práticas.

Marcos Lima abordou a dimensão econômica da privacidade e da segurança, observando que esses elementos podem operar como vantagens competitivas legítimas, mas também como mecanismos de fechamento estratégico de mercado. Afirmou que alegações técnicas feitas por plataformas devem ser submetidas a análise empírica, avaliando-se o risco efetivamente mitigado, o impacto sobre terceiros e a proporcionalidade da medida. Argumentou que, em mercados digitais, privacidade e segurança muitas vezes funcionam como justificativas ambivalentes, exigindo rigor analítico e transparência.

Mônica Fujimoto propôs uma abordagem regulatória que integre diferentes racionalidades — jurídica, técnica e econômica — para lidar com os conflitos entre proteção de dados, concorrência e inovação. Criticou soluções binárias e generalizações normativas, defendendo a adoção de critérios de proporcionalidade, accountability e transparência na construção de obrigações regulatórias. Argumentou que os reguladores devem se capacitar para avaliar os efeitos práticos das escolhas de design e arquitetura das plataformas, sobretudo em contextos assimétricos de informação.

Discussões principais

  • Políticas técnicas de plataformas moldam o exercício dos direitos dos titulares e devem ser analisadas à luz da LGPD, inclusive quanto aos princípios de necessidade, finalidade e não discriminação.

  • Segurança e privacidade podem atuar tanto como garantias legítimas quanto como estratégias de fechamento de mercado, exigindo análise contextualizada e baseada em dados.

  • A complexidade dos ecossistemas digitais demanda uma atuação coordenada entre CADE, ANPD e agências setoriais, evitando sobreposições normativas e lacunas regulatórias.

  • A regulação baseada em risco e evidência foi apontada como abordagem preferencial, por permitir respostas proporcionais, flexíveis e adaptadas ao dinamismo tecnológico.

  • O painel reforçou a importância de construir instrumentos regulatórios que não apenas protejam direitos fundamentais, mas também preservem incentivos à inovação e à concorrência leal.

O encerramento do evento consolidou o entendimento de que enfrentar os desafios dos mercados digitais exige uma governança regulatória multissetorial, informada por evidências e sensível aos trade-offs entre proteção de direitos e desenvolvimento tecnológico.

🔗 Acesse o evento na íntegra aqui.

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